Certa vez escrevi: "Não queira do verbo mais do que ele pode oferecer: ação. Queira da vida o riso inesperado, do pincel do artista o movimento, dos olhos o brilho e de um poema de Drummond a salvação." (
aqui)... pois que hoje um poema de Drummond salvou meu dia, quiçá, até, meus últimos meses. Obrigada, mestre, daqui de onde estou pra onde você estiver.
AMAR
(Carlos Drummond de Andrade)
Que pode uma criatura senão,
senão entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.